ESPECIAL MULHER “Tudo o que ensino ou partilho com os outros vem da vida que vivi, não é teoria. É vivência, é história, é alma” By Revista Spot | Maio 20, 2025 Maio 21, 2025 Share Tweet Share Pin Email Há pessoas que nascem para cuidar. Outras tornam-se cuidadoras pela dor. E há ainda aquelas, como Ana Cristina Silva, que transformam cicatrizes em pontes, desafios em caminho e dor em sabedoria partilhada. Psicóloga, formadora e mentora de vidas, Ana Cristina é a alma da clínica ACS, um espaço onde a escuta, a verdade e a transformação convivem lado a lado com o afeto. Filha da guerra, chegou de Angola com apenas quatro anos, marcada pela perda e pela urgência de crescer cedo. Perdeu a mãe para a doença mental ainda em criança, mas cada ferida tornou-se caminho. Casou aos 18, foi mãe aos 20, e desde então não parou de se reinventar. Hoje, com quatro filhos e dois netos, é também uma profissional de excelência, porque viveu, na pele, tudo aquilo que partilha. Com palavras, com silêncio, com um abraço ou apenas com a presença, ensina sem nunca se colocar acima e mostra que é possível amar a vida, mesmo quando ela nos falha. Ana Cristina Silva é mais do que uma psicóloga. Fala com presença, com silêncio, com abraço. Ensina sem se elevar. Mostra que é possível florescer em terrenos áridos e encontrar paz nas pequenas coisas, como uma manta, um livro e um cão aos pés. Uma vida com verdade. Uma vida com amor. Como começa o seu dia? Tem algum ritual matinal de que não abdique? Dependendo do dia da semana, há hábitos diferentes, mas há um fio condutor que me é essencial: o ritual da gratidão. Acordo cedo. Por volta das 6h45 já estou de pé. O meu marido normalmente sai ainda mais cedo, e assim que me levanto, procuro aquele conforto do roupão ou de um casaco bem quentinho, esse primeiro abraço do dia. Sigo então até à varanda do meu quarto. Tenho a sorte de ali ter uma vista maravilhosa. E quando digo “sorte”, faço questão de explicar: sorte, para mim, é estar preparada para reconhecer uma dádiva quando ela surge. É saber acolhê-la com consciência e gratidão. Então ali fico, esteja sol, chuva ou trovoada, a contemplar o céu e os montes. E digo, em voz alta ou em silêncio: obrigada. Gratidão a Deus, à vida, ao universo. Esse momento é meu. É o meu ancorar no presente. Antes de qualquer coisa, agradeço. Agradeço por estar viva, por ser quem sou, por tudo o que tenho vindo a aprender. Acredito profundamente que todos os dias sou mais. Mais consciente, mais preparada, mais humana. E esse é o trabalho de uma vida. O que lhe dá energia logo pela manhã? Além da paisagem que me alimenta a alma, é a vibração da gratidão que me energiza. Mas confesso: há um companheiro sem o qual não passo, o meu café. É o meu pequeno luxo diário. Quando estou por casa, cuido de mim com mais atenção. Tomo o pequeno-almoço com calma, saboreando cada momento. Gosto de estar em casa. Aliás, poderia estar um mês inteiro em casa sem me aborrecer. Isso diz muito sobre a minha paz interior, da forma como fui criando o meu ninho. Conforto, para mim, não exige muito. Uma manta, uma boa almofada, o chão, um bom livro, música suave e o Zequinha – o meu neto de quatro patas – a dar-me uma lambidela. É esse aconchego simples que me enche de energia. A qualidade de vida está, muitas vezes, no essencial. Entre ser mãe, profissional e mulher, qual desses papéis a chama primeiro ao acordar? Sou tudo isso, sim: mãe, mulher, profissional, mas antes de mais, sou filha. E essa identidade marcou profundamente o meu caminho. Perdi a minha mãe há pouco tempo, mas a verdade é que, emocionalmente, a perdi muito cedo. Ela viveu com doença mental, e desde os meus quatro anos fui obrigada a crescer depressa. Fomos forçadas a fugir de Angola durante a guerra, e ao chegar a Portugal, a minha mãe entrou num colapso profundo. Foi internada durante um ano e, quando voltou, eu já não a reconhecia. A minha infância terminou ali. Desde muito nova, fui assumindo papéis de cuidadora, mediadora, apoio emocional, aquilo que muitas crianças não deveriam precisar de ser. Casei aos dezoito anos, tornei-me mãe aos vinte. Fui sempre aquela que cuida, que segura, que resolve. Por isso, sim, sou uma filha, mas fui uma filha-mãe. E isso moldou a minha forma de ser em tudo. Na mulher que sou, na mãe que me tornei, e na profissional que procuro ser com verdade. Porque tudo aquilo que ensino ou partilho com os outros, vem da vida que vivi. Não é teoria. É carne, é história, é alma. Nos últimos três anos de vida da minha mãe, fui novamente cuidadora. Mas desta vez com serenidade, com uma espécie de reconciliação interior. Cuidei dela com ternura, com amor e com a minha criança interior sentada ali ao lado, finalmente em paz. Quem é a Ana Cristina Silva? Sou uma mulher profundamente grata. Grata pela vida, pelas oportunidades, pelos encontros, pelas dores e pelas superações. Hoje, vejo-me como alguém muito serena. A serenidade habita-me, mesmo nos momentos mais difíceis. Já tive, literalmente, o meu gabinete a arder, pessoas a gritar, o caos instalado, e eu ali, calma, firme, a apagar o fogo. Não porque não me importo, mas porque acredito que é na tempestade que precisamos de manter a clareza. Sou apaixonada pelo meu trabalho. Não é apenas o que faço, é quem eu sou. Acredito que, através da minha profissão, consigo acrescentar algo aos outros. E isso dá sentido ao meu caminho. Mas essa entrega vem com exigência. Sou exigente comigo, com os meus, com os meus utentes. Ouço muitas vezes: “É preciso tanto?” E respondo com verdade: é. Porque eu também sou a primeira a dar o exemplo. Trabalho aos domingos, sim. E não, não tiro nada ao meu casamento por isso. Pelo contrário: esforço-me ainda mais durante a semana para criar espaço para estar com o meu marido, para estarmos juntos. Os momentos contam mais do que os horários. Com os meus filhos e netos é igual: estou sempre presente, sempre atenta. Faço o esforço de ajustar tudo para estar com eles nas férias, nas idas às compras, nos mergulhos na piscina. Mas confesso: não sou uma pessoa fácil. Principalmente de entender. Quem me compreende, normalmente, é quem me ama ou quem consegue ver além da forma. Tenho um lado direto, que pode parecer duro. Não estou no meu trabalho para agradar. Estou para transformar. Para tocar onde dói, para mostrar a dor e ajudar a pessoa a atravessá-la. Porque só sentindo é que se cura. Sim, há quem diga: “Ela é um horror!” e têm razão, às vezes sou. Mas essas não são as minhas pessoas. Quem fica, é porque quer crescer. E sabe que, por mais firme que eu seja, eu nunca abandono. Se o telefone tocar de madrugada e for sério, eu atendo. Já corri de Vila do Conde para Braga por causa de uma jovem de 19 anos. Isto não é um trabalho de horários, é um compromisso com vidas humanas. Gosto de ajudar os outros a ajudarem-se. Não sou salvadora, nem pretendo ser. Dou ferramentas. E aprendo tanto com os outros, sou uma eterna aprendiz. Recebo críticas com humildade e escuto, porque também estou em construção. Mas, mesmo com tudo isto, por dentro há um lado meu que se recolhe. Um lado mais sombrio, mais silencioso. Às vezes gosto de me esconder no meu casulo. Preciso desse recolhimento para me manter sã, emocional e fisicamente. O meu quarto de vestir é o meu refúgio. Tem lá uma casa de bonecas que me foi oferecida pela minha filha Sofia. Nunca tive uma em criança. E hoje está lá, como símbolo da minha criança interior. É um espaço só meu, cheio de memórias, afetos e vaidade também, porque sim, sou vaidosa e adoro roupas, chapéus, sapatos. Faz parte de mim. Sou, no fundo, um paradoxo. Um misto de luz e sombra. Uma escuta atenta que, às vezes, só queria silêncio. Um sorriso constante com lágrimas guardadas. E, acima de tudo, uma mulher inteira, que continua todos os dias a descobrir-se. Tudo começa em nós? Foi essa escuta interior que a levou a entrar na universidade aos 37 anos, já com quatro filhos e uma vida construída? Sim, foi uma mudança muito profunda. Até então, sempre trabalhei em empresas. Liderei equipas, estive muito ligada à área dos recursos humanos, sempre gostei de trabalhar com pessoas, de formar, de acompanhar. Sentia que tinha um dom para isso. Mas, na altura, tinha enveredado por outro caminho: tinha duas ourivesarias. Antes disso, tinha trabalhado no ramo grossista, viajava bastante, comprava peças para revender às lojas, ouro, prata, aço. Era um mundo que me fascinava. Viajei muito, estive nas principais feiras internacionais, Itália várias vezes por ano, Suíça… e foi assim que decidi abrir as minhas próprias lojas. Vivia aquilo com alma. Investi tudo de mim, a todos os níveis. Mas veio 2006. A crise, a entrada do FMI. E as pessoas deixaram de procurar o que não era essencial. Com duas lojas num centro comercial e uma equipa de nove pessoas, era impossível sustentar aquilo. Vieram as insolvências. Sem vergonha, foi o que tinha de ser. Devolvi o que consegui e o que não consegui ficou por pagar. Perdi quase tudo. Fiquei com a casa onde vivemos há 28 anos e com as lojas onde hoje é a minha clínica. Curiosamente, ninguém as quis comprar. Parecia um sinal. Foram tempos duríssimos. Vivi um verdadeiro luto. Três meses sem sair de casa. Senti-me esmagada. Mas houve um momento em que percebi: “Do chão não passo. Só posso levantar-me. E se me levantar, tem de ser para algo que me faça sentido.” Foi então que, por acaso, ou talvez não, participei num workshop de constelações familiares. Foi transformador. Silêncio, profundidade, exigência emocional. Tocou-me profundamente. E depois, quase como um sussurro interior, pensei: “E se eu fosse estudar Psicologia?” Contei a ideia à minha cunhada Clementina que me incentivou logo desde o primeiro momento. Tinha eu 36 anos. Fui à Universidade Católica, percebi que ainda podia candidatar-me. Em julho, soube que o exame de admissão seria em setembro, no dia de anos da minha filha mais nova. Comprei os manuais do secundário, fechei-me nesta sala, estudei sozinha durante julho e agosto. Fui fazer o exame. Saiu o que eu menos tinha estudado! Ainda assim, tirei 13. Fiquei tão feliz. Não estudava desde os 17 anos. Aquilo deu-me uma força enorme. Entrei na universidade. Quase ninguém acreditava. E, com os meus quatro filhos, a mais nova com seis anos , organizei tudo para estudar de dia e manter as rotinas da família. Levar, buscar, estar presente ao jantar. Foi exigente. Mas foi também um renascimento. O que mudou na sua vida depois de se tornar mãe? Muita coisa mudou, ou melhor, mudou tudo. Ser mãe transformou completamente a minha vida. Tenho quatro filhos, e cada um deles trouxe uma mudança diferente, porque são todos únicos. Fui mãe pela primeira vez aos 20 anos, da Joana. Não foi uma decisão inteiramente minha naquele momento. Eu sentia que ainda precisava de viver, respirar um pouco, porque vim para Braga por casamento, vinda da casa da minha mãe, foi como se estivesse sempre ao serviço de alguém. Comecei logo a trabalhar em Famalicão, e tornar-me mãe tão cedo foi assumir uma responsabilidade enorme quando o que eu mais desejava era algum espaço para mim. Mas o meu marido, o João, queria muito ser pai, tinha esse sonho, esse desejo forte de sermos uma família. E eu, que sempre vi nele o meu pilar, a minha âncora, decidi fazer-lhe essa vontade. Digo isto abertamente, sem qualquer problema, porque a Joana conhece esta história, sabe que foi uma filha desejada, mesmo que naquele momento eu ainda estivesse a descobrir o meu lugar no mundo. Nos primeiros anos, a Joana esteve muito sozinha, só aos 5 anos vieram os irmãos. Eu trabalhava muito, saía de Braga ainda antes das 9h para estar em Famalicão, e muitas vezes só voltava depois das 19h. Queria tanto ser uma mãe presente, mas a vida era exigente. E foi nesse ritmo que, ao longo de cinco anos, decidimos adiar mais filhos, havia a casa para comprar, a vida para estabilizar. Acabámos por encontrar esta casa em Gualtar, onde vivemos até hoje, já lá vão quase 28 anos. Na altura, éramos dois miúdos, e a vizinhança não nos via com bons olhos. Lembro-me de episódios caricatos, de pessoas a fazer juízos de valor, a comentar pelas costas, mas fomos ficando, fomos construindo o nosso espaço, com muito esforço, e com o tempo, esta casa tornou-se o lar onde os nossos filhos cresceram e onde agora os nossos netos brincam. Foi logo depois de nos mudarmos para aqui que engravidei da Catarina. Deixei de trabalhar por um tempo, e pouco depois veio o João, e depois a Sofia. Cada gravidez foi vivida de forma diferente, com mais maturidade, com o coração mais preparado. O relógio biológico estava finalmente a funcionar. A Joana, sempre cheia de energia e personalidade, é o meu arco-íris. A Catarina é a minha estrela. O João, o meu sol. E a Sofia, a minha lua. Hoje, olho para trás e percebo que a maternidade me moldou, deu-me força, ensinou-me o amor incondicional, mostrou-me o que é abdicar de mim por algo muito maior. Cada filho acrescentou uma cor à minha vida, um sentido mais profundo à minha existência. E essa é, sem dúvida, a maior mudança de todas. Qual foi a última coisa que aprendeu com os seus filhos? Aprendo com os meus filhos todos os dias e cada um deles ensina-me algo profundamente diferente, à sua maneira. Com a Joana, aprendi a ser livre. A Joana, ainda adolescente, ousava ser quem era, com o cabelo ruivo, os olhos pintados de vermelho, e um estilo muito próprio. Ela não se moldava aos padrões, e isso assustava-me no início, talvez porque sempre fui muito “certinha”, aquela mãe arranjadinha, discreta, um pouco troféu, confesso. Lembro-me de um dia, no Pingo Doce, em que duas mulheres se riram dela por ser diferente. Fui atrás delas e disse com toda a certeza: quem me dera que tivessem a coragem e a beleza interior da minha filha. A Joana ensinou-me a quebrar as caixas onde nos colocamos. Mostrou-me que ser diferente é uma forma maravilhosa de ser. Hoje, digo com orgulho: és livre, única e extraordinária. Ela ensinou-me que o julgamento alheio não define nada, a liberdade, sim. A Catarina é o meu porto de abrigo. Traz-me a calma e a sabedoria suave. Tem a estabilidade do pai, a serenidade de quem escuta antes de agir. Mesmo quando não concorda comigo, diz-me com amor: “Mãe, sei que vais fazer à tua maneira, mas pensa por este lado…” E muitas vezes, dou por mim a mudar de ideias. Trabalhamos juntas e ela é essa âncora silenciosa que me guia sem me prender. Com ela aprendi o poder da escuta, do equilíbrio e da paz que conforta. O João é o meu sol. Um jovem extraordinário, que enfrentou muitos desafios com uma força serena. Sempre foi focado, rigoroso, determinado a conquistar o seu lugar pelo mérito. Foi ele quem disse: “As minhas notas têm de ser conquistadas, não dadas.” Recusou facilidades, escolheu Administração Pública com uma estratégia clara, entrou, fez mestrado em Finanças Internacionais, e hoje trabalha com a Alemanha, num ritmo impressionante, mas, todas as quintas-feiras, faz voluntariado com idosos. O João observa-me sem dizer nada, mas sei que está sempre atento a mim. É a minha luz. Quando ele sorri, as minhas dores desvanecem. A Sofia é o meu espelho e o meu desafio. Foi mãe muito jovem, aos 16 anos, e é uma mente inquieta, opinativa, altamente inteligente. Questiona-me, põe-me à prova, tira-me da zona de conforto todos os dias. Faz-me o que eu, tantas vezes, faço aos outros: desafia-me, obriga-me a crescer, a rever-me. Diz-me, em tom de provocação amorosa: “Mãe, quando fores velhinha, vais viver comigo e com o Luís.” E eu brinco: “Ai, não me deixem contigo, que me pões a andar logo às seis da manhã!” Mas é isso mesmo, ela é energia, movimento, empurrão para a frente. Nunca me deixa estagnar. Cada um deles é único. Se lhes perguntares quem é a mãe, provavelmente vão descrever pessoas completamente diferentes. E todos têm razão. Porque eu sou todas essas versões e sou diferente para cada um deles, conforme as suas necessidades. Eles tornaram-se pessoas muito distintas, e é isso que me enche de orgulho. Acredito, sinceramente, que os filhos escolhem os pais. E se me escolheram a mim e ao João, é porque tínhamos algo a acrescentar nas vidas deles, assim como eles têm enriquecido imensamente a nossa. Hoje, quando nos reunimos todos, com os meus dois netos também por perto, é uma verdadeira festa. E eu olho à volta e penso: que privilégio é este amor. Que sorte é poder aprender, crescer e ser transformada pelos filhos. Houve algum momento em que sentiu, com toda a clareza, que tinha mesmo de mudar algo em si? Sim, houve um momento muito marcante. Foi em março do ano passado. A minha mãe estava doente há três anos, e apesar das muitas idas ao hospital, das noites sem dormir, ela superava sempre os momentos difíceis. Ninguém esperava a sua partida. Quando recebi o telefonema do hospital a dizer “venha despedir-se da sua mãe”, o chão fugiu-me. Foi um choque. Nessa altura, a minha cunhada também estava a lutar contra um cancro e eu acompanhei-a durante todo o processo de quimioterapia. Olhei à volta e percebi que, dentro da família, eu era provavelmente a pessoa com mais disponibilidade e capacidade emocional para estar ali, presente, para acolher. Talvez por ser psicóloga, por ter uma agenda mais flexível, e porque me senti chamada a assumir esse papel com dignidade e amor. As sessões de quimioterapia eram longas, mas tornávamo-las momentos mais leves — uma espécie de “animação improvisada”. Colocava ali a minha sensibilidade, o meu lado humano e profissional. Era conhecida no hospital, ora por estar com a minha mãe, ora com a minha cunhada. Mas chegou um ponto em que o copo transbordou e eu nem dei por isso. Só percebi quando me vi incapaz de sair da cama. Foram duas, três semanas em que o meu corpo e a minha alma disseram “basta”. Mudei-me para o quarto ao lado, mal me levantava. Não me apetecia continuar. O que me manteve de pé foram dois compromissos: a minha mãe, que ainda precisava de mim, não só financeiramente, com os cuidados que exigia no lar, como também pela presença, e a minha cunhada Luísa, que me tinha pedido que a acompanhasse nas quimioterapias até junho. Eu sou uma mulher de princípios e lealdade, e esses dois compromissos foram os fios que me seguraram. Curiosamente, nem os meus filhos nem os meus netos foram o que me travou naquele momento. Estavam bem, encaminhados. Pensava no meu marido e achava, na minha dor, que até poderia ser mais feliz sem mim. Senti que não acrescentava nada, que a minha ausência não faria falta. Estava num esgotamento completo, um burnout. Um amigo meu, que é psiquiatra e também poeta, ajudou-me. Disse-me com clareza: “isto é um burnout severo, e não vais sair disto sem ajuda.” Comecei medicação, um reforço rápido e também muita suplementação vitamínica. Cancelei a agenda, coisa que raramente faço, e fiquei ali a cuidar de mim. No domingo de Páscoa saí do quarto pela primeira vez. Olhei à volta e senti que tudo estava mais ou menos encaminhado, que podia dar-me aquele tempo. Foi um momento de egoísmo consciente, calculado, mas necessário. Comecei a recuperar, pouco a pouco. Em agosto, a minha mãe foi internada três vezes. Foi um mês extremamente duro, mas eu já estava mais forte. Em outubro, já conduzia, voltava a trabalhar. No dia 7 de dezembro, a minha mãe faleceu. Janeiro trouxe obras em casa, foi duro, mas também me deu fôlego para recuperar. Continuo de luto. A dor da ausência da minha mãe ainda me acompanha. Ontem, por exemplo, lembrei-me que fazia três meses da sua partida. Senti tanto a falta dela. Antes de sair de casa pensei: “se a minha mãe cá estivesse, dizia-lhe ‘hoje vou ter entrevista com a Maria’”. Ela sabia sempre com quem eu ia, orgulhava-se de tudo. Tinha uma gaveta só com as minhas entrevistas, recortes, revistas. Quando ia alguém a casa dela, mostrava com alegria: “vejam, é a minha filha.” Era muito bonita, mesmo doente. Gostava de me ver arranjada, feliz. E é essa imagem que guardo e que me continua a inspirar todos os dias a cuidar de mim e dos outros. Sente que é precisamente quem é, enquanto ser humano, com a sua história, a sua vivência e as suas relações, que lhe permite, de forma mais genuína, ajudar quem a procura? Sem dúvida. A minha história de vida, os caminhos que percorri, as dores que senti e as alegrias que vivi, tudo isso moldou a profissional que sou hoje. É impossível separar a terapeuta da mulher. E eu acredito profundamente que, para se cuidar verdadeiramente dos outros, é preciso sentir com eles, estar inteira, presente. Não é uma questão de “preparação” no sentido clássico da palavra. O meu ritual é simples: começo o dia com um momento de gratidão. Depois, entro no consultório com o coração disponível. Quando aceito acompanhar alguém, faço um diagnóstico inicial, sim, mas depois mergulho, recorro a livros da universidade, à bibliografia, a tudo o que aprendi. Mas sobretudo, aplico a minha abordagem baseada no sentir. No modelo de psicologia sistémica, muito do nosso trabalho nasce dessa escuta profunda, dessa intuição que vai além do manual. Por isso, não preparo cada consulta de forma mecânica. A exceção são alguns casos mais complexos, adições, abuso de substâncias, onde há mesmo necessidade de monitorizar. Porque a verdade, mesmo que às vezes doa, é essencial. E às vezes a pessoa ainda não está pronta para a encarar por si, mas sente-se segura para partilhá-la comigo. Não fala para si, fala para mim e eu anoto, observo, e avalio se é preciso envolver outros profissionais, chamar alguém da família, fazer essa ponte. Mas o que realmente me preparou para este caminho foram os meus pais. Eu acredito que os filhos escolhem os pais e eu escolhi os meus. Eles deram-me tudo. A minha mãe deu-me beleza, sensibilidade, inteligência. O meu pai, astúcia, coragem, estratégia. Trouxe o melhor de cada um comigo. E mesmo os momentos difíceis que vivemos juntos foram fundamentais. Deram-me ferramentas. Deram-me chão. Prepararam-me para ser mulher, ser mãe, e ter força nas pernas para caminhar. Depois, veio o homem que me escolheu, porque foi ele que me escolheu, e com ele construí o meu lar. E os meus filhos… os meus filhos são a lapidação. Eles deram o brilho final. Deram-me contorno, profundidade e direção. Tudo o que sou é o somatório dessas escolhas, desses encontros. É isso que levo comigo para cada consulta. Já sentiu que mudou a vida de alguém? Eu não acho que mudo a vida de ninguém. Acho que o que faço é desconstruir. Ajudo a derrubar crenças que não são nossas, que vêm dos pais, da escola, da igreja, da sociedade. Crenças que nos aprisionam. E quando as pessoas se permitem deitar essas crenças por terra, algo nelas muda. E aí sim, elas mudam as suas vidas. Eu só as ajudo a ver aquilo que já está dentro delas. O que faço é um trabalho com base em muitas abordagens, desde o Bert Hellinger, passando pelo psicodrama, pela Virginia Satir, pelo Freud, Jung, Beck, a terapia cognitivo-comportamental. Às vezes a pessoa tem medo de andar de autocarro? Então vamos andar de autocarro, juntos. Nada de ficar a imaginar. Vamos à vida real, à prática. É assim que eu trabalho: com verdade, com presença. E claro que já acompanhei processos lindíssimos. Já vi pessoas a casarem, outras a divorciarem-se de forma consciente, outras a assumirem quem são. Houve um senhor que me marcou muito. Era casado, tinha duas filhas e veio ter comigo porque, com muita dor, queria deixar de ser gay. Imagine. Queria tomar medicação para “se curar”. Só aos 32 anos é que teve a primeira relação com um homem, depois de uma vida toda a reprimir-se. Na primeira consulta, disse que tinha uma amante, uma mulher. No dia seguinte, ligou a pedir uma consulta de urgência. Sentei-o no sofá, começou a chorar e confessou: “Menti-lhe. A minha amante… é um homem.” Hoje está separado, vive com o companheiro. A filha mais velha sabe, a ex-mulher também, e ele é feliz. Finalmente. Isso não foi obra minha. Foi dele. Eu fui só o gatilho, o espelho, o apoio no momento certo. E é isso que me move. Ajudar cada pessoa a encontrar a sua verdade. E faço isso sem julgamento. É algo que herdei da minha mãe e também sinto muito em mim, essa capacidade de escutar sem condenar. Lembro-me também de uma experiência que me marcou muito. Uma jovem veio até mim, indicada por outra utente, muito aflita. Tinha sido contactada pelo hospital: o pai, de quem estava afastada há anos e com quem tinha um passado de violência e dor, estava a morrer. Convidaram-na a ir despedir-se. E ela não sabia o que fazer. Disse-me: “Não sei se quero. Mas tenho medo de não ir… e depois arrepender-me.” Eu disse-lhe: “A única coisa que controlamos é o agora. O que vier depois, já não depende de nós.” Ela respondeu: “Eu não sou capaz.” E eu perguntei: “E se eu for contigo?” E fomos. Cancelámos todas as consultas desse dia. Entrámos no carro e seguimos para o hospital. Ela viu o pai. Tenho, no meu telemóvel, fotografias dos dois a despedirem-se. Não as tirei por vaidade, mas porque naquele momento senti que era importante eternizar aquilo para ela. Saímos. Ela deu-me um abraço tão apertado. Disse-me: “Está feito. Não volto. Mas fiz o que tinha que fazer.” E a paz que ela sentia naquele momento… foi das coisas mais bonitas que já vivi. É nestes momentos que percebo o que realmente amo fazer. Estar ali. No agora. Na urgência do coração. Gosto disso: de aparecer quando é preciso. De ser presença. De não fugir. E sim, há pessoas que dizem que mudei as suas vidas. Mas, no fundo, eu só as ajudei a encontrar o caminho. Foram elas que caminharam. Se pudesse escrever uma carta para a Ana Cristina de 20 anos, o que é que lhe diria? Se pudesse escrever para a Ana Cristina de 20 anos, diria algo assim: Ana Cristina, Vais passar por muita coisa, vai doer, vais sentir medo, mas não tenhas receio de ser quem és, nem de ser mãe, algo maravilhoso está a caminho, e a tua vida vai ser, sem dúvida, fantástica. Fantástica mesmo, com altos e baixos, como tudo o que vale a pena. Esta tua vida é para ser vivida intensamente, para ser sentida no corpo e na alma, para criar histórias e deixar marcas profundas. Vais deixar grandes marcas, nos teus filhos, nos teus netos, nas pessoas que cruzarem o teu caminho, e até nos jovens que, um dia, vão lembrar-se de ti com carinho. Tenho a sorte de ter jovens que me procuram e dizem, às vezes com um sorriso tímido, “Quem é a melhor psicóloga do mundo?” e eu sei que escolhi o caminho certo. Esses jovens talvez nem saibam ainda, mas um dia vão contar aos filhos ou netos sobre aquela psicóloga que os ajudou, que os ouviu, que os compreendeu. Por isso, Ana Cristina, segue em frente. Vais acrescentar tanto, vais crescer e aprender, mesmo nos momentos difíceis. Vai levar tempo, sim, e virá sofrimento, mas também muita alegria, muita generosidade, muito amor. Não tenhas medo. Vai. O mundo espera por ti. Qual foi a maior lição que a vida já lhe ensinou até agora? A maior lição que a vida me deu foi a aprender a ser grata. Especialmente pelas perdas, porque são elas que mais nos ensinam. Foi nas perdas que mais cresci, sem dúvida alguma. E foi através delas que compreendi também o verdadeiro significado do desapego. Entendi que nada é realmente nosso, que tudo o que temos é apenas emprestado nesta vida. Dou sem apego, porque aprendi que é assim que a vida deve ser vivida. Não partilho tudo, claro, mas o desapego está ligado diretamente à gratidão. A minha mãe dizia-me muitas vezes: “Quanto mais dás, mais tens.” E eu acredito profundamente nisso. Quando somos gratos, mesmo com pouco, abrimos espaço para que mais coisas boas entrem. Hoje eu ajudo-a, amanhã a Maria ajuda outra pessoa, e talvez essa pessoa ajude alguém que nem conhecemos. E essa corrente de generosidade pode, um dia, chegar até a um neto meu, sem que eu sequer saiba. Muita gente acha que isso é coincidência, sorte ou acaso. Mas eu chamo-lhe gratidão, o que damos volta para nós, e de formas inesperadas. Para mim, isso é tudo. Morada: Rua Óscar Dias Pereira, no 29 4710-081 Gualtar – Braga Contacto: +351 910 076 822 (chamada para a rede móvel nacional) Facebook: Ana Cristina Silva Instagram: @clinica.acs.braga “Recomeçar é um ato de coragem. Como nos dizia Freud, só mudamos quando permanecer como estamos se torna uma dor insuportável” “A saúde do cabelo é o indicador silencioso do nosso bem-estar integral”
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