Psicologia “A tecnologia que encurta distâncias é a mesma que ‘desliga’ pessoas que estão lado a lado” By Revista Spot | Setembro 30, 2024 Outubro 1, 2024 Share Tweet Share Pin Email Vivemos numa era em que a tecnologia, embora tenha o poder de encurtar distâncias, também cria barreiras invisíveis entre aqueles que estão fisicamente próximos. A facilidade de comunicação instantânea através de ecrãs substitui, muitas vezes, o contacto humano, deixando-nos mais conectados virtualmente e, ao mesmo tempo, mais distantes emocionalmente. Este paradoxo reflete as transformações nas nossas interações sociais e na forma como valorizamos as relações. Segundo a psicóloga clínica Marta Cerqueira Alves, neste contexto, é importante explorar a forma como a evolução tecnológica influencia a intimidade, a autenticidade e a satisfação nos relacionamentos amorosos e familiares, desafiando-nos a encontrar um equilíbrio entre a conveniência digital e a necessidade humana de conexão genuína. As relações estão em mudança? As relações humanas estão em constante transformação. Para a maioria de nós, a necessidade de nos relacionarmos é inata, e as nossas interações diárias têm um impacto profundo no desenvolvimento da nossa personalidade e no nosso bem-estar. No entanto, as relações representam um desafio constante, já que envolvem as nossas necessidades e expectativas, bem como as do outro, e a tentativa de conciliar tudo isso. Nos últimos anos, tem havido uma tendência crescente para darmos mais atenção às nossas próprias necessidades, o que adiciona um desafio extra ao ‘encaixe’ relacional. Além disso, a evolução tecnológica tem influenciado significativamente o contexto relacional. Por um lado, a tecnologia encurta distâncias e facilita muitas relações, permitindo a expansão das nossas redes de suporte. Contudo, um dos desafios atuais é o tempo que passamos nos ecrãs, em detrimento das interações diretas com os outros. O uso prolongado dos ecrãs tem um efeito viciante, como a neurociência já mapeou, uma vez que somos constantemente expostos a estímulos imediatos, com a ‘recompensa’ de um clique. Embora a tecnologia nos facilite a vida em muitas áreas, também pode reduzir o contacto presencial e o investimento emocional nas relações. Sabemos que o contacto à distância não proporciona a mesma satisfação nem tem o mesmo impacto na nossa saúde mental. A falta de interação social direta – que envolve conversar, olhar nos olhos e sentir a presença física do outro – pode aumentar o risco de desenvolvermos sintomas de ansiedade e depressão. Com o tempo, é mais fácil interagir através de um ecrã, onde podemos ligar e desligar à vontade, esconder emoções e obter respostas imediatas no Google. No entanto, essa facilidade dificulta a criação de laços afetivos consistentes e duradouros. A tecnologia e as redes sociais tornaram as relações mais acessíveis e rápidas, o que é útil num mundo acelerado, mas, ao mesmo tempo, tornaram-nas menos genuínas, menos gratificantes e mais voláteis. De que forma o mundo digital afeta a intimidade nos relacionamentos amorosos e familiares? A forma como o mundo digital afeta a intimidade nos relacionamentos amorosos e familiares reflete-se num paradoxo: a mesma tecnologia que aproxima geograficamente as pessoas distantes é capaz de distanciar aquelas que estão lado a lado. O carácter aditivo dos ecrãs, como telemóveis, tablets ou computadores, faz com que quanto mais tempo passamos neles, menos tempo investimos nas relações. Isto aplica-se a todas as esferas da vida — sejam as relações entre pais e filhos, entre casais ou entre amigos. Se momentos como o pequeno-almoço em família, as pausas no trabalho ou até o tempo antes de dormir são passados a olhar para um ecrã, perde-se a oportunidade de partilhar esses instantes com aqueles que nos rodeiam. A atenção, em vez de ser dirigida às pessoas com quem estamos fisicamente, é canalizada para o estímulo fácil e imediato do mundo digital. Quando nos apercebemos, o tempo que poderia ter sido dedicado a cultivar essas relações já passou, e o arrependimento e o sentimento de vazio podem surgir. No entanto, a dependência criada pelos dispositivos tecnológicos faz com que, muitas vezes, se repita esse comportamento no dia seguinte. As relações, por natureza, exigem tempo, presença e atenção. Quando permitimos que a tecnologia substitua esses elementos, a conexão emocional acaba por ser relegada para segundo plano, em favor de uma ligação instrumental e superficial. As barreiras impostas pela tecnologia são frequentemente invisíveis, mas com o tempo manifestam-se em dificuldades de comunicação, em sentir-se ouvido, conflitos, insatisfação e até solidão. A pressão das redes sociais para projetar perfeição promove relações superficiais? As redes sociais exercem uma forte pressão para projetar perfeição, o que pode, de facto, promover relações superficiais. Estas plataformas tornaram-se um espaço ‘público’ onde partilhamos apenas aquilo que queremos mostrar aos outros, criando, muitas vezes, expectativas pouco realistas sobre as nossas vidas para quem nos segue. Na maioria dos casos, a partilha nas redes sociais resume-se a uma fração ínfima das nossas vivências pessoais, conjugais e sociais. Este acesso constante à vida dos outros pode gerar uma perceção distorcida de perfeição, nomeadamente da vida conjugal, provocando comparações que podem despertar em nós sentimentos de insegurança, insatisfação e até inferioridade. É importante reconhecer que as redes sociais podem criar uma ilusão sobre a vida alheia. Para desmantelar estas perceções, devemos manter presente que o que é mostrado online não reflete a totalidade da realidade. Além disso, é fundamental refletir sobre o que valorizamos nas nossas relações para torná-las mais significativas e gratificantes. Por outro lado, quem expõe a sua vida nas redes sociais pode também ser apanhado por estas expectativas irrealistas, o que pode culminar em sentimentos de vazio e frustração quando o foco sai do online e se regressa ao quotidiano real. Recentemente, tem havido uma tendência interessante nas redes sociais de partilhar vulnerabilidades, com muitos influencers a exporem angústias, medos e até momentos de fragilidade emocional, como choros em direto ou diferido. No entanto, isto levanta a questão: até que ponto essa exposição é saudável? Qual é o impacto dessa partilha pública, tanto para o indivíduo que a faz quanto para os seus seguidores? A vulnerabilidade pode, na verdade, fortalecer os laços? A partilha de vulnerabilidade é a base para a cimentação de relacionamentos autênticos e duradouros, porque dessa forma abre-se espaço para uma conexão mais sincera e profunda e para o reforço da confiança mútua e assim com mais margem para o crescimento pessoal e relacional. No entanto, antes de partilhar as minhas vulnerabilidades de forma genuína e pertinente, é essencial que eu me conecte com elas, identificando-as e atribuindo-lhes significado, tendo em conta a minha história de vida. A partilha de vulnerabilidade deve ser contextualizada e segura antes de ser simplesmente autêntica. Por exemplo, posso e devo mostrar à minha filha que a mãe também fica triste e chora. Contudo, não irei desmoronar à frente dela por ter sido humilhada no trabalho, pois é importante que ela perceba que, apesar de sentir emoções dolorosas, a mãe é capaz de resolver os seus dilemas. Caso contrário, ela pode sentir-se desprotegida. Em relação ao trabalho, é necessário partilhar as minhas dificuldades com colegas ou superiores, mas isso pode influenciar a perceção que eles têm de mim. No entanto, se estou sobrecarregada de tarefas, é importante que comunique o meu cansaço e a minha falta de capacidade para responder a todas as exigências. A partilha de vulnerabilidade depende fortemente do contexto em que ocorre, das pessoas que recebem a informação e da forma como a integram. É importante destacar que a autenticidade, a partilha e a confiança são componentes-chave da intimidade, sendo preditores da satisfação conjugal. A vulnerabilidade pode efetivamente reforçar laços, aumentando o sentimento de confiança, aceitação mútua e conexão. Contudo, este processo não é linear, pois pode levar a uma perceção desvalorizada que o outro tem sobre mim e, em alguns casos, resultar em afastamento ou até abandono, aumentando a probabilidade de trauma relacional. Geralmente, a exposição da vulnerabilidade é mais segura em relações próximas e confiáveis. No entanto, todos nós temos pensamentos e sentimentos que guardamos para nós ou que eventualmente partilhamos com o/a nosso/a psicólogo/a e/ou psicoterapeuta, que recebe a vulnerabilidade de uma forma mais neutra. Qual a importância de equilibrar autocuidado e espaço pessoal com o espaço partilhado numa relação saudável? Quanto mais nos conhecemos a nós próprios, mais preparados estamos para dividir o nosso espaço e o nosso tempo com outra pessoa. O autoconhecimento, na maioria das vezes, está intrinsecamente ligado ao reconhecimento da necessidade de autocuidado, que varia de pessoa para pessoa. É essencial perceber o que representa o autocuidado para cada um de nós e identificar as atividades que nos ajudam a recuperar das obrigações diárias e da sobrecarga emocional. Ao incorporarmos hábitos que promovam esse equilíbrio entre responsabilidade e descanso nas nossas rotinas, estaremos mais harmoniosos e satisfeitos, tornando-nos mais aptos para acolher os outros. Este processo também nos permite reconhecer os nossos limites pessoais e relacionais. Além disso, o autocuidado inclui a preservação da identidade de cada indivíduo dentro da relação, assegurando que cada um possa ser a sua versão mais autêntica. Tanto o autocuidado como as relações saudáveis são preditores cruciais da nossa saúde mental, contribuindo para um bem-estar duradouro e uma convivência harmoniosa. É possível manter uma relação saudável e genuína à distância? As relações à distância apresentam desafios únicos, mas têm sido, sem dúvida, facilitadas pela tecnologia das videochamadas, que combina estímulos auditivos e visuais — é quase uma questão de ‘ver para crer’. Para que estas relações funcionem, é fundamental estabelecer rotinas de contacto, com a frequência que faça sentido para ambos, bem como partilhar o quotidiano de cada um. Discutir assuntos difíceis à distância pode ser complicado; o pensamento de ‘falamos disso quando eu estiver aí’ pode resultar num acumular de questões pendentes que só se agravam nas visitas, ‘minando’ os reencontros com temas pesados. Promover o contacto presencial sempre que possível é crucial. É evidente que, quanto menos interações presenciais houver, mais desafiante se torna a relação. Aqui, o fator previsibilidade assume um papel essencial: quanto tempo prevemos que esta relação se mantenha à distância? A incerteza gera sintomas de stress e ansiedade. É uma coisa saber que um casal viverá essa situação durante um ano e outra completamente diferente quando um pai ou marido está a trabalhar no estrangeiro por tempo indeterminado. O ser humano precisa de alguma previsibilidade para se sentir seguro, tanto em relação a si próprio como nas suas relações. Com tantas mudanças nos conceitos de família, amor e relacionamentos, o futuro das relações será certamente diferente? Sem qualquer dúvida que a evolução tecnológica será um desafio, inclusivamente a tão falada inteligência artificial. Termos um robot que nos dá respostas é muito útil e muito prático, mas é ameaçador para a relação humana, que pode ter a dádiva da empatia e da compaixão, que alimenta a tal parte genuína de que falávamos anteriormente: a emoção e o afeto. Nenhum robot terá a capacidade de dar o colo de uma mãe, manifestar a estima de um marido ou mulher, ou mesmo estabelecer uma relação psicoterapêutica pautada pela compaixão. Talvez seja essencial olharmos para a tecnologia como um forte aliado, mas nunca como um substituto. E no fundo, pautar limites diários para o tempo e a forma como essa mesma tecnologia invade o nosso sistema interno, familiar e social. Esses limites são, sem dúvida, o nosso maior desafio da atualidade e das próximas décadas. Consultório Marta Cerqueira Alves – Psicologia e Psicoterapia (presencial e online) Equipa: Ana Beiramar, Ana Magalhães, Diana Teixeira, Marta Alves e Sara Lima Morada: Av. da Liberdade nº666 1ºEsq. Sala G e I 4710-249 Braga Instagram: @consultoriomartacerqueiraalves Facebook: Consultório Marta Cerqueira Alves – Psicologia Clínica e Psicoterapia LinkedIn: Consultório Marta Cerqueira Alves www.martacerqueiraalves.com Agendamento de consultas: consultorio.martacerqueiraalves@gmail.com “Ignorar as nossas emoções é agir contra nós próprios, amplificando-as e impedindo que orientem a nossa vida de forma saudável” “O ‘sedentarismo mental’ e a falta de estímulos intelectuais são inimigos silenciosos da saúde do cérebro”
Psicologia “A ansiedade é uma batalha silenciosa que muitos enfrentam todos os dias” A ansiedade, companheira silenciosa do nosso dia-a-dia, pode ser tanto um sinal de alerta como uma sombra persistente que nos…
Psicologia “Num relacionamento tóxico, a paz da vítima é sempre o preço a pagar pela presença do outro” Nos dias de hoje, o conceito de ‘relacionamento tóxico’ tem ganho destaque nas discussões sobre saúde emocional e bem-estar. Muitas…
Psicologia “Não há autenticidade sem mudança interior” O ritmo acelerado da vida moderna, a pressão para sermos produtivos e a expectativa de mantermos uma imagem constante de…