Psicologia “Ser mãe também é sentir medo, exaustão e insegurança, para lá do conto de fadas que nos contam” By Revista Spot | Maio 16, 2025 Maio 17, 2025 Share Tweet Share Pin Email Entre a expectativa social de plenitude e a vivência íntima de emoções contraditórias, há um espaço emocional pouco falado na experiência da maternidade, onde moram o medo, a culpa, a exaustão e o amor profundo, tudo ao mesmo tempo. É nesse território delicado que atua a psicologia perinatal: uma área que acolhe, escuta e valida a mulher nos seus momentos mais vulneráveis. Rita Ferreira Oliveira, psicóloga perinatal, encontrou, na sua própria experiência de maternidade, o impulso para abraçar uma missão. Através do seu olhar empático e da sua prática clínica, ajuda a desconstruir mitos, aliviar pesos e devolver à mulher o direito de ser inteira, imperfeita e humana. “Porque cuidar da saúde mental materna é cuidar do início da vida da mãe, do bebé e da relação entre ambos”, garante. A sua experiência enquanto mãe teve influência na escolha da psicologia perinatal? Sem dúvida. O meu interesse pela psicologia perinatal nasceu da minha própria experiência enquanto mãe. Durante a gravidez da minha filha, vivi um verdadeiro turbilhão emocional. Apesar de estar grata por aquele momento, desejado e planeado, deparei-me com sentimentos ambivalentes, medos, dúvidas e mudanças profundas não só no meu corpo, mas também na minha identidade. Até então, nunca tinha considerado trabalhar nesta área, mas a maternidade trouxe-me uma nova lente através da qual comecei a ver o mundo e a psicologia. Percebi que, apesar de ser uma etapa tantas vezes idealizada, a gravidez e o pós-parto podem ser períodos de grande vulnerabilidade emocional. Senti na pele a importância de haver um espaço seguro onde a mulher possa falar sobre tudo aquilo que não cabe no “conto de fadas da maternidade”. Um espaço onde não haja julgamentos, só escuta, compreensão e apoio. Foi isso que me motivou a querer estar disponível para outras mulheres que atravessam esta fase da vida. A psicologia perinatal tornou-se, para mim, uma missão profissional com um significado muito profundo. A gravidez é frequentemente vista como um momento mágico, mas nem sempre é assim. Quais são os desafios emocionais mais comuns que as mulheres enfrentam? É verdade que a gravidez é, muitas vezes, retratada como uma bolha encantada onde só há paz, amor e plenitude. Mas a realidade vivida por muitas mulheres pode ser bem diferente. E isso não significa que não haja momentos felizes, mas sim que esses sentimentos podem coexistir com outros, mais desafiantes. Na prática clínica, é comum encontrar uma grande discrepância entre o que a mulher esperava sentir e aquilo que está a viver. Entre os desafios emocionais mais comuns estão a ansiedade em relação ao parto, à saúde do bebé ou à própria capacidade de ser mãe. Algumas mulheres sentem-se pressionadas a “dar conta de tudo” mesmo antes de o bebé nascer. Há também medos relacionados com a perda de liberdade, com a responsabilidade que está para vir, e com a transformação da identidade. Além disso, as alterações na imagem corporal podem ser vividas com desconforto, sobretudo num mundo onde ainda existe uma enorme pressão estética. Acresce a isto que muitas mulheres relatam também dificuldades na relação conjugal, seja por mudanças na intimidade, no equilíbrio da relação, ou pela falta de compreensão do parceiro quanto ao turbilhão emocional que estão a viver. Outro tema muito presente é a ambivalência emocional: é muito comum sentir, ao mesmo tempo, alegria e medo, gratidão e exaustão, amor e insegurança. Isto pode ser confuso, especialmente quando tudo à volta transmite a ideia de que se devia estar apenas feliz. Em que consiste a depressão perinatal e como se distingue do chamado baby blues? Podemos dividir a depressão perinatal em depressão pré-natal (que surge durante a gravidez) e depressão pós-parto. É mais comum do que se imagina e, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, pode afetar entre 10% a 20% das mulheres. Os sintomas incluem tristeza profunda, cansaço extremo, alterações no sono e no apetite, perda de interesse pelas atividades do dia a dia, dificuldade em criar vínculo com o bebé e sentimentos de culpa, inutilidade ou desesperança. Em alguns casos, podem surgir pensamentos intrusivos ou sensação de incapacidade para cuidar do bebé. Tudo isto sem que a mulher perceba, muitas vezes, que se trata de depressão. Por outro lado, o baby blues é algo bastante diferente. Acontece com até 80% das mulheres nos primeiros dias após o parto e é considerado uma resposta normal e transitória às alterações hormonais e à intensidade emocional do pós-parto. Surge geralmente entre o 3.º e o 5.º dia após o nascimento, e manifesta-se por choro fácil, irritabilidade, ansiedade leve e alterações de humor. Para se compreender melhor, podemos imaginar o baby blues como uma nuvem passageira num céu que se volta a abrir – sensações intensas, mas breves e intercaladas com momentos de normalidade e bem-estar. Já a depressão perinatal é como um nevoeiro cerrado que se instala e não levanta com facilidade, afetando a forma como a mulher se sente, pensa e se relaciona com o mundo e com o seu bebé. A principal diferença entre ambas está, portanto, na duração, na intensidade e no impacto que os sintomas têm na vida da mulher. Se o mal-estar persiste por mais de duas semanas, interfere nas tarefas diárias ou dificulta o vínculo com o bebé, é fundamental procurar ajuda. Acho essencial reforçar que pedir ajuda não é sinal de fraqueza, mas de consciência e cuidado. A saúde mental materna é uma peça-chave no bem-estar da mãe, do bebé e da família como um todo. A maternidade implica uma grande transformação a nível emocional e identitário. De que forma isso pode impactar a autoestima e a relação da mulher consigo própria? Tornar-se mãe é, sem dúvida, uma das transições mais profundas que uma mulher pode viver, é uma revolução interna. Não é apenas uma mudança de rotina, é uma transformação na forma como ela se vê, sente e se posiciona no mundo. Durante esta fase, é comum que a mulher sinta que já não se conhece. A dedicação intensa aos cuidados com o bebé, a privação de sono, as alterações físicas e hormonais e a nova organização da vida familiar podem contribuir para isso. A autoestima pode ser abalada de várias formas. Por um lado, o corpo muda e, muitas vezes, o tempo para cuidar de si própria torna-se escasso. Por outro, tarefas que antes davam prazer ou um sentimento de competência, como o trabalho, a vida social ou hobbies, ficam em segundo plano. Esta “suspensão do eu” pode trazer sentimentos de frustração, culpa e até solidão. A mulher precisa agora de integrar o papel de mãe com os restantes aspetos do seu ser e esta fase pode ser vivida com alguma turbulência interna, mas também como uma oportunidade de crescimento e redescoberta. Por isso, é fundamental apoiar a mulher nesta reconstrução da relação consigo mesma. Uma relação baseada na aceitação e na compaixão. Relembrá-la de que é mãe, mas também continua a ser mulher, amiga, profissional, parceira. Como é que a psicologia perinatal ajuda a integrar sentimentos ambivalentes e a desconstruir a pressão social de “dar conta de tudo”? A psicologia perinatal oferece um espaço seguro, onde se pode despir a capa da “mãe perfeita” e simplesmente ser, com todas as suas emoções, dúvidas, cansaço e contradições. Muitas vezes, a mãe sente que não tem lugar para falar sobre o lado mais duro da maternidade. Sente amor pelo bebé, sim, mas também pode sentir medo, frustração, tristeza ou vontade de fugir por uns momentos e por mais que custe assumir, faz parte da experiência real de ser mãe. Este misto de emoções aparentemente opostas, é muito mais comum do que se pensa. Sentir alegria e exaustão ao mesmo tempo, amor e raiva, gratidão e solidão, não é sinal de fraqueza ou ingratidão. É, na verdade, sinal de humanidade. A psicologia perinatal ajuda a normalizar estas emoções e a compreendê-las dentro do contexto de uma transição tão intensa como a maternidade. Além disso, ao longo do acompanhamento psicológico, é possível rever e desconstruir a pressão social de “dar conta de tudo”. Uma pressão que muitas vezes vem disfarçada de elogios como “és uma supermãe!”. Mas nenhuma mulher precisa de ser super nada. Precisa sim de ser cuidada, apoiada, validada. A psicologia ajuda a mulher a fazer precisamente isso: redefinir o que é ser “boa mãe”, não como alguém que faz tudo sozinha, mas como alguém que sabe ouvir-se, respeitar os seus limites e pedir ajuda quando precisa. A psicologia perinatal devolve à mulher a confiança de que não precisa corresponder a ideais inalcançáveis, precisa apenas de ser verdadeira consigo mesma e com o bebé que tem nos braços. Porque no fundo, quando a mãe se permite ser inteira abre espaço para um vínculo mais real, mais leve e mais amoroso com o seu filho e consigo mesma. A culpa e a ansiedade estão muito presentes na maternidade. O que é que pode originar esses sentimentos e que estratégias recomenda para lidar com elas de forma mais saudável? De facto, a culpa e a ansiedade, são companheiras de muitas mulheres durante a maternidade. A culpa nasce frequentemente da crença de que existe uma única e correta forma de ser mãe que normalmente é uma versão idealizada, perfeita, incansável e sempre disponível, o que raramente coincide com a realidade. Basta a mulher sentir cansaço, desejar tempo para si ou cometer um erro normal do dia a dia, para essa culpa surgir como um apontar de dedo, a dizer que talvez esteja a falhar. Este apontar de dedo é, muitas vezes fruto, da pressão social, pelas redes sociais e, por vezes, por histórias familiares que a mulher traz consigo. Já a ansiedade tende a nascer do amor. É um amor tão grande, tão visceral, que a mulher tem um desejo imenso de proteger o bebé de tudo! O problema é que, na tentativa de prever e controlar tudo, entra num ciclo de hipervigilância, onde o corpo e a mente não têm descanso. Algumas estratégias que ajudam a lidar com estas emoções de forma mais saudável incluem desenvolver o autoconhecimento, cultivar o autocuidado, aceitar receber ajuda e procurar apoio psicológico sobretudo quando a culpa e a ansiedade começam a dominar os dias. Ainda sente que existe algum estigma ou resistência em procurar apoio psicológico nesta fase tão sensível? Sim, o estigma ainda existe. Isto acontece, em parte, devido à ideia de que a maternidade é “a melhor fase da vida”, o que pode fazer com que muitas mulheres sintam que procurar apoio psicológico é um sinal de que as coisas não estão “cor-de-rosa” como deveriam. Além disso, o foco nos cuidados de saúde nesta fase continua a ser predominantemente voltado para a saúde física. São poucos os profissionais que, ao acompanhar mulheres grávidas ou no pós-parto, se atentam à saúde mental da mãe. Na minha visão, a desconstrução deste estigma começa precisamente nos cuidados de saúde primários, onde a Psicologia deveria ter um papel de destaque, ajudando a prevenir, identificar e tratar questões emocionais antes que se tornem um problema maior. Acredito também que precisamos de falar mais sobre isto nas consultas médicas, nos centros de saúde e mesmo na comunicação social. Quando a saúde mental for vista como parte da saúde geral (tal como se mede a tensão arterial ou se faz uma ecografia), será mais fácil para cada mulher sentir-se legitimada a pedir ajuda, sem culpa ou vergonha. Que impacto tem uma rede de apoio, familiar, profissional e comunitária, na saúde emocional da mulher durante a gravidez e o puerpério? Existe um provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança” e tem tudo a ver com o impacto de uma rede de apoio. Ter uma rede de apoio sólida é um dos maiores fatores de proteção da saúde mental da mulher durante a gravidez e, sobretudo, no pós-parto que é uma fase altamente exigente a todos os níveis. Quando falamos de rede de apoio, referimo-nos a várias camadas: o/a companheiro/a, a família próxima, amigas que escutam sem julgar, profissionais de saúde atentos e também a comunidade como grupos de mães, associações locais ou até vizinhas que passam por experiências semelhantes. O apoio emocional – sentir-se escutada, validada, compreendida – ajuda a mulher a integrar melhor as suas emoções, a relativizar as suas dúvidas e a ganhar confiança no seu papel de mãe. Já o apoio prático – como alguém que segura o bebé para ela poder dormir uma hora, prepara uma refeição ou limpa a casa – pode ser um verdadeiro alívio físico e psicológico. Ambos são essenciais. As redes sociais podem inspirar, mas também gerar comparações e frustração. Como pode uma mãe proteger-se da pressão do “ideal materno” online? Hoje em dia, as redes sociais são uma montra com recortes editados da realidade, muitas vezes com filtros, partilha (apenas) de conquistas, fotografias de recuperação do pós-parto e casas dignas de revista. Isto pode gerar uma sensação de inadequação e culpa, porque a mãe se compara a padrões inatingíveis. Para se proteger, é essencial filtrar aquilo que se consome: seguir apenas páginas que partilham experiências autênticas – mas, mesmo assim, ter em mente que cada experiência é única – e deixar de seguir perfis que causam ansiedade, sentimento de fracasso ou outro tipo de desconforto. Outra estratégia é fazer pausas digitais e investir mais tempo em relações presenciais, onde há escuta e empatia reais. Que mensagem gostaria de deixar às mulheres grávidas ou no pós-parto que se sentem sobrecarregadas, cansadas ou desconectadas da experiência que imaginaram viver? Não estão sozinhas! Ser mãe é transformador, mas também desafiante, confuso e, por vezes, solitário. Ninguém nasce a saber ser mãe e cada caminho é único. Se as coisas não estão a ser como imaginou, isso não significa que está a falhar. Significa apenas que está a viver a realidade da maternidade e há apoio disponível para atravessar este momento com mais acolhimento e menos exigência. Peça ajuda, fale com quem confia, procure profissionais que a escutem. Cuidar de si é também cuidar do seu bebé. Facebook: Rita Ferreira Oliveira – Psicologia Instagram: @ritaoliveira_psicologa Marcações: https://linktr.ee/ritaoliveira_psicologa “Os olhos dizem muito sobre a nossa saúde e a cirurgia oculoplástica é a arte de melhorar essa comunicação” “A maternidade mostrou-me uma verdade sem filtros nem perfeições. Ensinou-me o que é o amor”
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