SAÚDE “Hoje a Endocrinologia cruza genética, microbiota, sono, metabolismo e saúde mental” By Revista Spot | Outubro 7, 2025 Outubro 12, 2025 Share Tweet Share Pin Email A Endocrinologia já não se limita a estudar hormonas, fala de pessoas, de histórias e de equilíbrio. É a medicina do futuro, que cruza genética, microbiota, sono, metabolismo e saúde mental para compreender o corpo como um sistema inteligente, em constante diálogo consigo próprio. A médica endocrinologista Selma Souto acredita que é nesse diálogo que se esconde a chave para as doenças que mais desafiam o nosso século: a obesidade e a diabetes. Define a obesidade como a doença dos 4 M’s, metabólica, mecânica, mental e monetária, e insiste que tratar vai muito além de perder peso. Os novos fármacos, diz, “mudaram o jogo”: diminuem o risco cardiovascular e metabólico, melhoram o sono, função hepática e a qualidade de vida. Com experiência em investigação, ensino e cargos científicos, Selma Souto representa uma Endocrinologia personalizada, humana e orientada por evidência, onde escutar é o primeiro passo antes de tratar. Com mais de 20 anos de experiência clínica, como define hoje a missão de um endocrinologista numa sociedade em que a obesidade, a diabetes e as disfunções hormonais estão a crescer a um ritmo preocupante? O endocrinologista tem um papel de enorme relevância, especialmente em tempos como os que vivemos, em que as doenças endócrinas e metabólicas como a diabetes e a obesidade, têm uma prevalência crescente. A cada dia, há novas evidências científicas e novas tecnologias que surgem, abrindo portas para métodos de diagnóstico e tratamentos mais eficazes e, consequentemente, para a melhoria da qualidade de vida dos doentes. E o endocrinologista tem a missão – e o constante desafio – de se manter atualizado no diagnóstico e tratamento, bem como na prevenção das doenças endócrinas que impactam a vida de milhões de pessoas em todo o mundo. Foi investigadora principal em ensaios clínicos, docente universitária e hoje exerce cargos de direção em sociedades científicas. De que forma estas três áreas, investigação, ensino e liderança, se complementam e influenciam a sua prática clínica e o desenvolvimento da Endocrinologia em Portugal? Estas áreas funcionam de forma complementar. A participação em ensaios clínicos permitiu-me o acesso precoce a terapêuticas inovadoras na área da diabetes e da obesidade, contribuiu para gerar evidência científica e melhorar a prática clínica, promoveu a minha atualização contínua, desenvolveu o meu espírito crítico, e permitiu-me um papel ativo no avanço da medicina e, claro, da especialidade! Quanto ao ensino universitário, vejo como um privilégio ter tido a oportunidade de partilhar e transmitir conhecimento aos mais novos, sempre ávidos por aprender. Em relação à direção de sociedades científicas, permite-me ter um papel ainda mais ativo na promoção do conhecimento e investigação em Endocrinologia, na influência no rumo da especialidade, na definição de políticas de saúde e na expansão e alargamento de redes de colaboração nacional e internacional. O conhecimento adquirido em todas estas experiências contribuiu seguramente para moldar a minha prática clínica! Mas a verdade é que, aliado ao meu enorme prazer em partilhar conhecimento com outros médicos, em ensinar os estudantes de Medicina e em realizar investigação científica, está o propósito do meu dia-a-dia que é ser médica! E ser médica é muito mais do que diagnosticar e tratar doenças: é cuidar e guiar cada jornada de vida com respeito! Costuma referir-se à obesidade como a doença dos “3 M’s”: metabólicas, mecânicas e mentais. Que implicações práticas tem esta abordagem integrada na definição de estratégias de tratamento? Na verdade, até podemos dizer que a obesidade é uma doença dos “4 M`s” e acrescentar as complicações monetárias, que também estão, muitas vezes, associadas à doença. A implicação prática desta visão é que quando tratamos uma pessoa que vive com obesidade não nos podemos centrar no objetivo apenas de perder peso. É necessário tratar a pessoa como um todo e procurar prevenir e/ou melhorar eventuais complicações já existentes. Existem mais de 200 complicações associadas à obesidade e devemos procurar a melhor estratégia terapêutica para a gestão da obesidade e das suas complicações. Nos últimos anos, os novos medicamentos para a obesidade revolucionaram a prática clínica. Para além da perda de peso, quais são os benefícios metabólicos e cardiovasculares mais surpreendentes já comprovados pela ciência? Os novos fármacos para o tratamento da obesidade têm muitos benefícios para além da redução do peso, nomeadamente a melhoria da tensão arterial, da dislipidemia (i.e., colesterol e/ou triglicerídeos elevados), da glicose (i.e., açúcar no sangue), com elevada percentagem de remissão de pré-diabetes. Há ainda melhorias no “fígado gordo”, na apneia do sono, na redução do perímetro da cintura e na redução do risco cardiovascular. Portanto, quanto tratamos a pessoa que vive com obesidade não podemos ter uma visão ou abordagem “peso-cêntrica”! Temos de olhar para além dos números, para além da balança! Se já falamos de oncologia de precisão ou de cardiologia personalizada, também a Endocrinologia caminha nessa direção? Até que ponto fatores como o perfil genético, a microbiota ou os biomarcadores podem ditar planos de tratamento verdadeiramente individualizados? Sim, a Endocrinologia caminha na mesma direção. Atualmente já é aplicada a Endocrinologia de precisão em algumas áreas, tais como, a identificação de casos de diabetes monogénica, a identificação de biomarcadores moleculares na área de tumores endócrinos e a utilização de dispositivos digitais de monitorização continua de glicose. O futuro poderá ser a identificação de variantes genéticas para ajudar a prever a resposta a determinados fármacos e o uso do perfil da microbiota intestinal para ajustar o plano alimentar, i.e., a realização de nutrição e farmacologia personalizadas de acordo com perfil genético. Do síndrome dos ovários poliquísticos à menopausa, muitas condições femininas continuam a ser desvalorizadas ou vistas como “naturais”. Quais continuam a ser os maiores tabus na saúde hormonal da mulher em Portugal e como podemos superá-los? Em relação à síndrome de ovários poliquísticos (SOP), essa está rodeada de vários mitos, designadamente, que se trata de um problema raro, que se restringe a uma alteração nos ovários, que toda a mulher com SOP é infértil ou que vai aumentar de peso, entre outros. A verdade é que o SOP é a endocrinopatia mais frequente na mulher em idade reprodutiva, o seu diagnóstico depende da presença de irregularidades menstruais, hiperandrogenismo (i.e., excesso de pelo terminal, acne, alopecia androgénica) e/ou morfologia ovárica poliquística, e nem sempre há quistos visíveis! O SOP está associado a um aumento do risco de doenças metabólicas e este risco não desaparece com a idade, pelo que estas mulheres devem manter sempre acompanhamento! E em relação à fertilidade, muitas mulheres conseguem engravidar naturalmente, e há mulheres com SOP magras! No entanto, o maior tabu na saúde hormonal da mulher é, sem dúvida, a terapêutica hormonal de substituição na menopausa, e muitos destes tabus ou mitos vêm de estudos antigos. Como exemplo, refiro-me à perceção generalizada de que terapêutica hormonal de substituição causa cancro da mama, que prejudica o coração aumentando o risco de enfarte ou AVC, que está associada ao aumento de peso, que causa dependência e não se pode parar, e que é perigosa em qualquer dose ou via de administração. A verdade é que hoje sabemos que a terapêutica hormonal de substituição na menopausa é segura e eficaz quando prescrita corretamente e com monitorização médica adequada. E uma mensagem importante é que não é igual para toda a mulher, i.e., deve ser individualizada! O aumento da diabetes gestacional é uma realidade preocupante. Na sua perspetiva, estamos a falhar no rastreio e na prevenção, ou este fenómeno resulta sobretudo das mudanças no estilo de vida e da idade materna cada vez mais avançada? O rastreio da diabetes gestacional não está a falhar! A sua prevalência tem vindo a aumentar, fruto da idade materna mais avançada, com contributo das mudanças de estilo de vida e da maior prevalência de pré-diabetes e de excesso de peso e obesidade na mulher em idade fértil. É importante que a mulher com fatores de risco para diabetes gestacional tenha um acompanhamento adequado no sentido de controlo dos fatores de risco modificáveis. As doenças da tiroide são muito prevalentes em Portugal. O que mudou nos últimos anos no diagnóstico e no tratamento, em particular no cancro da tiroide, onde o rastreio e as terapêuticas evoluíram de forma significativa? O diagnóstico de nódulos da tiroide aumentou em muitos países, incluindo Portugal, em grande parte pelo diagnóstico acidental em exames de imagem realizados por queixas não relacionadas com doenças da tiroide. No entanto, é importante referir que não está recomendado o rastreio universal da população assintomática! Apesar do aumento do número de diagnósticos de nódulos da tiroide, houve um grande avanço com a utilização de sistemas de classificação dos nódulos da tiroide. Esses sistemas passaram a ser usados rotineiramente auxiliando na decisão de quando fazer biópsia aspirativa por agulha fina. Isso tornou a avaliação mais objetiva e reduziu a realização de biópsias desnecessárias! No que diz respeito ao tratamento do cancro da tiroide também tem havido mudanças nos últimos anos, tais como, a opção de vigilância ativa, i.e., monitorização com ecografia em vez de cirurgia imediata para os microcarcinomas papilares de baixo risco, a maior tendência a preferir lobectomia em lesões de baixo risco em vez de tireoidectomia total, reduzindo a morbilidade e a necessidade subsequente de reposição hormonal, o uso mais seletivo de iodo radioativo (i.e., para doentes de baixo risco, a terapia adjuvante com iodo-131 deixou de ser automática), e a disponibilidade de terapêuticas sistémicas para o cancro diferenciado refratário a iodo e para formas avançadas. Outro avanço significativo é a disponibilidade crescente de testes moleculares que ajudam a determinar o risco e a orientar a terapêutica, i.e., a implementação da oncologia de precisão. Outra realidade em Portugal, que vem ganhando espaço na prática clínica, sobretudo no âmbito da patologia benigna, é o recurso a técnicas minimamente invasivas como a radiofrequência, micro-ondas, termoablação por laser e injeção percutânea de etanol para alguns casos de nódulos benignos sintomáticos e nódulos hiperfuncionantes em doentes que querem evitar cirurgia ou que têm risco cirúrgico. Na diabetes tipo 1, a tecnologia está a transformar a vida dos doentes, com sensores contínuos de glicose, bombas inteligentes e algoritmos de pâncreas artificial. Até que ponto estas soluções já estão a mudar a realidade dos doentes portugueses? Felizmente, a evolução tecnológica tem permitido às pessoas que vivem com diabetes a monitorização diária da sua doença de forma mais eficiente e aprimorada! Estas novas tecnologias permitem maior controlo glicémico, com menor risco de hipoglicemias e maior flexibilidade na rotina. O desenvolvimento das novas tecnologias está a permitir a gestão cada vez mais facilitada da doença. Obviamente que, para tirar o maior partido desta tecnologia, é fundamental o médico identificar qual a tecnologia indicada e ideal para cada pessoa que vive com diabetes. Para algumas pessoas o mais simples pode ser o ideal, para outras a tecnologia mais avançada pode ser preferível! Hoje sabemos que existe uma relação bidirecional entre sono e obesidade. Que avanços espera ver nesta área, em particular na prevenção da obesidade e da diabetes, e de que forma poderão transformar a prática clínica nos próximos anos? Creio que esta é uma área com grande potencial para transformar a prática clínica nos próximos anos. Existe evidência de que intervenções direcionadas ao sono podem ajudar a prevenir a obesidade e a diabetes tipo 2, tanto pela regulação hormonal (e.g.insulina, grelina, leptina, cortisol), como pelo impacto no apetite, no metabolismo energético e na adesão a estilos de vida saudáveis. Há evidência de que aumentar o tempo e a qualidade do sono, manter horários consistentes de sono e alimentação (alinhamento circadiano), promover higiene do sono com ambiente adequado e redução de estímulos e tratar as insónias melhoram comportamentos alimentares, a adesão às intervenções de perda de peso e a manutenção do peso perdido. Uma área igualmente promissora é o uso de dispositivos digitais e apps para monitorizar o sono, a atividade e os padrões de alimentação em tempo real. No âmbito do tratamento farmacológico para a obesidade, os novos fármacos têm mostrado capacidade para melhorar os parâmetros do sono e reduzir significativamente a gravidade da síndrome da apneia obstrutiva do sono. A utilização destes fármacos para o tratamento da obesidade e da síndrome da apneia obstrutiva do sono, reduzindo o risco metabólico, será cada vez mais comum. Cada vez mais se fala da influência dos disruptores endócrinos – substâncias presentes em plásticos, pesticidas ou cosméticos – no metabolismo, na fertilidade e até no risco de obesidade. Considera que estamos preparados para lidar com esta ameaça silenciosa de saúde pública? Embora tenha havido avanço científico e regulamentar nos últimos anos, ainda não estamos totalmente preparados. Esta é uma ameaça silenciosa, que pode estar presente em plásticos e embalagens, especialmente se aquecidos, cosméticos e produtos de higiene, alimentos ultraprocessados, tintas, móveis, entre outros, e com implicações no risco de doenças metabólicas e infertilidade. A evidência científica tem mostrado uma ligação crescente entre hormonas, saúde metabólica e saúde mental. Acredita que a Endocrinologia estará cada vez mais próxima da Psiquiatria no futuro? Sim, a Endocrinologia e a Psiquiatria estão cada vez mais integradas, pois a ciência tem revelado a complexa interação entre as hormonas e o funcionamento cerebral. Doenças, como a depressão e a ansiedade, podem ter causa endócrina, e há doenças endócrinas como as da tiroide, hipófise e suprarrenais que se podem manifestar com sintomas psiquiátricos. A abordagem multidisciplinar é fundamental para o sucesso do tratamento, pois permite interpretar a doença de forma completa, cuidando tanto dos sintomas físicos como dos mentais. Vivemos mais tempo, mas nem sempre melhor. Até que ponto a Endocrinologia pode ajudar a envelhecer com mais saúde e autonomia, retardando repercussões como a sarcopenia, a perda de densidade óssea e até o declínio cognitivo? O endocrinologista também se dedica ao diagnóstico e ao tratamento das repercussões endócrinas do envelhecimento e pode ser um aliado valioso no combate ao declínio relacionado com a idade, abordando os desequilíbrios hormonais e nutricionais que podem afetar a saúde muscular, óssea e cognitiva. O endocrinologista intervém quando necessário, promovendo rigorosa supervisão na prescrição de terapêutica de reposição hormonal, tanto na menopausa quanto na andropausa, na otimização de nutrientes como vitamina D, cálcio, magnésio entre outros. Mas esta é uma abordagem complementar que deve ser integrada sempre com um estilo de vida saudável, intervindo nomeadamente na alimentação, exercício físico, higiene do sono, na redução do stress, tabaco, álcool e exposição solar inadequada. A era de excesso de informação é, muitas vezes, contraditória. Na sua experiência, quais são os maiores mitos sobre saúde hormonal que circulam, sobretudo nas redes sociais, e como podemos melhorar a literacia nesta área? Na área da Endocrinologia, o que mais circula atualmente nas redes sociais é sobre a terapêutica da obesidade. Desde crenças em fórmulas milagrosas sem qualquer evidência científica, ao preconceito do uso de medicamentos para tratamento da obesidade. É crucial desmistificar a ideia de que a obesidade é uma questão de “falta de força de vontade” ou “uma escolha individual”. No que diz respeito ao tratamento farmacológico da obesidade é importante realçar que não são tratamentos de “curta-duração” e por outro lado no caso de se suspender o tratamento há geralmente reganho de peso. É fundamental entender que os medicamentos para obesidade são uma ferramenta de tratamento que deve ser usada sempre sob prescrição e com acompanhamento médico para garantir sucesso terapêutico sem deficiências nutricionais! E é importante entender que o tratamento não é igual para todas as pessoas que vivem com obesidade. Se tivesse de destacar apenas uma inovação ou linha de investigação que poderá transformar a especialidade na próxima década, da inteligência artificial à edição genética, qual escolheria e porquê? Escolheria as duas! A inteligência artificial melhorará certamente a gestão, monitorização e a qualidade de vida, em múltiplas doenças, como a diabetes tipo 1, enquanto a edição genética e terapia celular são instrumentos com maior capacidade de curar em vez de tratar! Site: selmasouto.pt Instagram: @selma_souto_endocrinologia “A ‘quiet beauty’ celebra a beleza autêntica e subtil, sustentada por hábitos saudáveis e bem-estar emocional” “No estúdio de Pilates Clínico cruzam-se mães, atletas e pessoas em diferentes fases da vida que procuram recuperar o movimento, a força e a confiança no próprio corpo”
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